Capítulo 1: O inocente útil
“É muito bela e sábia, sabiamente formosa para estar sempre contente com me fazer sofrer. Fez juramento de não amar jamais, um só momento. E nesse voto infausto eu vivo morto só de a todos contar meu desconforto”. Esse é um trecho da obra “Romeu e Julieta” de Wiliam Shakespeare, como esperado, essa fala é de Romeu, que descreve a impossibilidade de ter a mulher amada em seus braços. Porém, se você pensa que essa é uma referência a Julieta, está muito enganado. A dama em questão é Rosalina, uma prima de Julieta que havia feito um juramento de castidade. É por Rosalina que Romeu, um adolescente de 17 anos, entra de penetra em uma festa, lá, ele conhece Julieta, uma garota que estava prestes a completar 14 anos de idade, e fica loucamente apaixonado. Foram poucos os encontros de Romeu e Julieta em toda peça, mesmo assim, eles se casaram e acabaram morrendo, um pelo amor do outro. A princípio, a obra de Shakespeare parece estar focada no romance, todavia, ele é mais profundo do que isso. Romeu e Julieta é uma crítica ao amor jovem, pois ele é impulsivo, incontrolável e inconstante.
Para Shakespeare, “os velhos desconfiam da juventude, porque já foram jovens”. A respeito dessa fase da vida, o jurista Rui Barbosa escreve:
“Mocidade vaidosa não chegará jamais a virilidade útil. Onde os meninos camparem de doutores, os doutores não passarão de meninos. A mais formosa das idades ninguém porá em dúvida que seja a dos moços: todas as graças a enfloram e coroam. Mas de todas se despiu, em sendo presunçosa. Nos tempos de preguiça e ociosidade cada indivíduo nasce a regurgitar de qualidades geniais. Mal esfloraram os primeiros livros, e já se sentem com força de escrever tratados. Dos seus lentes desdenham, nos seus maiores desfazem, chocarreiam dos mais adiantados em anos. Para saber a política, não lhes foi mister conhecer o mundo, ou tratar os homens. Extasiados nas frases postiças e nas idéias ressonantes, vogam à discrição dos enxurros da borrasca, e colaboram nas erupções da anarquia. Não conhecem a obediência aos superiores e a reverência aos mestres. São os árbitros do gosto, o tribunal das letras, a última instância da opinião. Seus epigramas crivam de sarcasmos as senhoras nas ruas; suas vaias sobem, nas escolas, até à cátedra dos professores. É uma superficialidade satisfeita e incurável, uma precocidade embotada e gasta, mais estéril que a velhice. Deus a livre a esta de tais sucessores, e vos preserve de semelhantes modelos”. (Trecho do discurso de Rui Barbosa no colégio Anchieta, em 1903).
A psicologia mostra que Shakespeare e Rui Barbosa não encontram-se equivocados, os adolescentes são de fato impulsivos e suas decisões podem ser muitas vezes apenas emocionais. A psicóloga Ana Carolina Schimidt de Oliveira explica: “Até os 18 – 21 anos, não temos plenamente desenvolvida essa região do cérebro que chamamos de lobo frontal, que é essa parte que fica na frente da nossa cabeça, atrás da nossa testa, essa parte mais frontal mesmo. Essa região é a que relacionamos com nossos comportamentos humanos, é o que nos diferencia dos outros animais, são funções consideradas superiores, as chamamos de executivas, elas são responsáveis por controlar os nossos impulsos, por exemplo, é o que chamamos de controle inibitório. É também através dessa região do cérebro que fazemos planejamentos dos nossos comportamentos, planejamos estratégias, identificamos se há erros nas nossas estratégias e se tem algum obstáculo. É através dela que vamos pensar a solução de nossos problemas, que mudamos nossos comportamentos, que fazemos nossa autocrítica e nos organizamos para realmente poder solucionar os diferentes problemas que enfrentamos em nosso dia a dia”.
Imagine uma sociedade da qual aqueles que detém o poder percebem que existe um grupo de pessoas que age com mais foco na emoção do que na razão. Imagine se essas pessoas descobrissem que os jovens podem ser a sua frente de batalha? Isso já aconteceu. No governo de Mao Tsé Tung, jovens começaram a se reunir em Pequim com o objetivo de lutar contra o os “seguidores do caminho capitalista”. Com braceletes vermelhos nos braços estampados os caracteres “Guarda Vermelha”, os garotos portavam fotos do presidente e bandeiras vermelhas. A guarda vermelha era constituída por pessoas com a faixa etária entre os 12 e os 30 anos de idade. Confira um trecho do artigo da carta de Mao Tsé Tung que foi extraída do livro “Ensino e revolução na China. Mao TseTung e outros autores”: “As ações revolucionárias dos guardas vermelhos são uma demonstração de ódio e condenação a todos os proprietários de terras, a burguesia, os imperialistas, revisionistas e seus lacaios, que exploram e oprimem os operários, camponeses e intelectuais revolucionários. Elas mostram que é justo rebelar-se contra os reacionários. Manifesto a eles meu caloroso apoio.”
No dia 13 de agosto de 2013, o jornal “Beijing News” publicou uma entrevista com um ex membro da guarda vermelha, Zang Hongbing. Aos 16 anos de idade, Zang acusou a mãe de ter criticado o presidente em uma discussão familiar, logo os militares a buscaram em casa e em dois meses ela foi executada. Na época da entrevista, Zang já tinha quase 60 anos de idade, “nunca vou me perdoar”, declarou.
No mesmo ano, outro ex membro dos guardas vermelhos resolveu se manifestar a respeito das atrocidades que cometeu naquele período, já com 67 anos de idade, Chen Xialou concedeu uma série de entrevistas nos arredores da Praça da Paz Celestial, perto de sua antiga escola. Chen era líder estudantil, ele conta que ordenou aos professores que fizessem fila no auditório, com orelhas de burro e cabeças encurvadas. A ação gerou a euforia de milhares de alunos que gritavam críticas aos professores. A euforia foi tanta que um bando invadiu o palco e começou a bater nos professores, que caíram no chão ensanguentados. Assustado, Chen fugiu. Em um blog dos ex alunos da escola, ele escreveu: “Eu me rebelei ativamente e organizei as denúncias dos líderes escolares. Mais tarde, quando servi como diretor da Escola do Comitê da Revolução, não tive coragem suficiente para brecar os processos desumanos. Minha desculpa oficial chega tarde demais, mas para a purificação da alma, o progresso da sociedade e o futuro da nação, é preciso fazer esse tipo de pedido de desculpas”.
Assim como esses dois ex – guardas vermelhos, várias outras pessoas começaram a se manifestar a respeito das atrocidades cometidas naquele período. Porém, usar os jovens como “escudo” não foi um instrumento particular de Mao TseTung, Adolf Hitler se utilizou da mesma técnica.
Em 1932, mais de 70 mil jovens se reuniram em um estádio lotado a fim de saudar Hitler. Ele confidenciou ao seu círculo íntimo: “Nós somos velhos, mas meus maravilhosos rapazes, que recurso humano incrível eles são! Com eles, posso construir um mundo novo”.
Nos tempos de Hitler foi criada a Juventude Hitlerista, destinada a meninos entre os 14 e 18 anos de idade. Para os garotos entre os 10 e os 14 anos havia o Deustsches Jungolv, seus membros eram chamados de pimpfe e naturalmente passavam a integrar a juventude hitlerista ao fazer 14 anos de idade. Para as meninas existia “A Liga Das Meninas Alemãs”. No ano de 1939, a filiação nas organizações juvenis passou a ser obrigatória para todos com idade entre os 10 e 18 anos, todas as outras organizações alemãs foram banidas. Da Juventude Hitlerista, os jovens saíam direto para a integração no partido nazista.
No ano de 2009, o jornalista Geneton Moraes escreveu no “blog das confissões” do “G1” sobre a entrevista que fez na Inglaterra com Henri Metelman, um ex integrante do partido nazista, educado na Juventude Hitlerista. Metelman afirmou não sentir o mínimo orgulho do que fez, mas justificava sua vontade de falar com o fato de que as próximas gerações devem ser alertadas. Ele descreve o sentimento dos garotos naquele período: ”Tudo o que me foi ensinado na Juventude Hitlerista e na escola dizia que eu pertencia a uma das maiores nações da terra: a alemã. Hitler era nosso líder. Para mim, ele era uma espécie de segundo Deus. Eu poderia morrer por ele!”
O pensamento crítico de Shakespeare e Rui Barbosa, assim como a trágica histórica, reflete nitidamente na legislação brasileira, que mostra-se cautelosa em relação a juventude. De acordo com o Art. 4º do Código Civil, pessoas entre 16 e 18 anos de idade são relativamente incapazes, ou seja, não podem realizar os atos da vida civil sem a presença de um maior de idade responsável. No entanto, ao completar os 16 anos, o jovem pode ser emancipado, mas essa emancipação não dá a ele todos os “poderes” de um “adulto”. Na obra “Manual de direito civil”, Flávio Tartuce explica: “A título de exemplo, um menor emancipado não pode tirar carteira de motorista, entrar em locais proibidos para crianças e adolescentes ou ingerir bebidas alcoólicas”.
Todavia, quando o assunto é escolher os representantes do povo, essa cautela é “jogada para o alto”. “Chegou a nossa vez, voto aos 16”, esse foi o grito de centenas de jovens na Assembleia Nacional no dia 02 de março do ano de 1988. Coordenados por entidades de representação estudantil, como a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) e a UNE (União Nacional dos Estudantes) os adolescentes pressionaram o parlamento, que através de uma emenda aprovada pelos deputados constituintes com 355 votos, ganhando o direito de ir as urnas para escolher os seus representantes. Com a vitória, a UBES criou a campanha “se liga 16”, que incentiva os adolescentes a exercerem a sua cidadania.
Mas há quem interessa o voto dos adolescentes? Como se não bastasse a falta de maturidade psicológica, os adolescentes também não possuem grandes experiências. Eles não viveram parte dos grandes marcos da história do Brasil, como a transição do plano real e a ascensão do PT (Partido dos Trabalhadores). Os adolescentes em sua maioria não tiveram experiências no mercado de trabalho, não empreenderam. Além disso, os adolescentes em geral não possuem pessoas sobre suas responsabilidades, como filhos ou enteados, o que torna difícil a sua percepção a respeito das mazelas sociais. Mas tudo isso pode ser suprido, ainda que parcialmente, pela intelectualidade. Esses eleitores poderiam orientar seus votos baseando-se nos livros, mas essa também não é a realidade brasileira.
O PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) demonstra o quanto o Brasil tem falhado na educação. Em leitura, nosso país é o 57º colocado; Em ciências, somos o 66º; e em matemática, ocupamos a 70ª colocação. A prova do PISA é feita por estudantes do ensino médio. Por falar no último período da vida escolar, segundo o INAF (Indicador de Analfabetismo Funcional), 13% das pessoas que concluem o ensino médio no Brasil podem ser consideradas analfabetos funcionais.
Ao perceber a fragilidade do sistema educacional brasileiro, milhares de famílias adotaram o homeschooling (educação domiciliar), porém, esse método não é legalizado no país. De acordo com o National Homeschool Association, homescholing é legal em todos os Estados dos Estados Unidos e vem crescendo no país, na década de 90 os alunos de homeschooling eram 850 mil e em 2016 se tornaram cerca de 2 milhões. Em 2017 o pesquisador Brian Ray comparou alunos que vieram do ensino domiciliar com alunos provenientes de escolas públicas e privadas. Nessa comparação, Brian utilizou 14 estudos que comparavam diversas disciplinas entre alunos de ensino domiciliar e alunos do ensino convencional, em apenas 01 desses estudos os alunos de homeschooling tiveram uma performance inferior aos outros, enquanto 02 mostraram performances iguais e 11 abordaram que os alunos de homeschooling tiveram desempenho superior.
Por que o Estado chama para si a responsabilidade de ensinar as crianças e os adolescentes ainda que seus resultados sejam ruins? Impossibilitados de buscar no homeschooling uma saída para o ensino provido pelo Estado, temos os colégios particulares. Porém, no ano de 2010, o Governo Federal tomou para si a prerrogativa de elaborar as provas para o ingresso nas Universidades Federais. Antes, cada Universidade elaborava suas provas, agora, o MEC (Ministério da Educação) elabora a prova do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). Com o ENEM, o governo apresenta os conteúdos que sempre cairão no exame e nenhuma escola arriscará fugir disso, pois estaria punindo os próprios alunos ao fracasso da prova. Outro fator a se analisar, é a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que norteia os currículos dos sistemas e redes de ensino, como também as propostas pedagógicas de todas as escolas públicas e privadas do país. Assim, dificilmente um colégio privado conseguirá trazer algo diferente do que o Estado pretende.
Se nossos adolescentes não apresentam o mínimo preparo, por que a UBES e a UNE fazem tanta questão que eles votem? “Democracia”, dizem eles. Todavia, o referido argumento não se apresenta sólido, visto que apenas 07 países do mundo adotam o voto aos 16 anos de idade: Argentina, Áustria, Cuba, Brasil, Equador, Malta e Nicarágua. Em quase todos os países da União Européia a idade mínima para votar é aos 18 anos, excetuando –se Áustria, Malta e Grécia (17 anos). Nos Estados Unidos a idade mínima para o alistamento eleitoral também acontece aos 18 anos de idade. Até 2015, a idade mínima para o voto no Japão era 20 anos, hoje eles votam a partir dos 18. A revista “The Economist” apresenta um índice que avalia as democracias em 167 países, na lista dos 07 que permitem o voto aos 16 anos, a Áustria foi a primeira colocada em 16º na classificação geral, seguida de Malta em 26º, Argentina em 48º, Brasil em 52º, Equador em 67º, Nicarágua em 122º e Cuba em 143º .
O outro argumento é de que os adolescentes precisam ser inseridos no processo eleitoral para que suas causas sejam apreciadas pelo poder público. Ora, se pensarmos assim, temos que legitimar o voto das crianças e até mesmo dos bebês. O poder público não deve se pautar no público votante, mas em toda a teia social. Não temos um código florestal devido ao número massivo de “árvores eleitoras”, mas porque existem pessoas com reais preocupações em relação a essa pauta, da mesma forma, são as leis que envolvem as crianças e os animais. Por falar nas crianças, por que elas não votam? Visto que reduzir a idade para votação é sinônimo de democracia e que elas tem interesses a serem defendidos, nossos pequeninos também deveriam ter o direito a fazer seus alistamentos eleitorais, porém, isso seria uma perda de tempo, tendo em vista que seus votos apenas refletiriam os de seus pais, enquanto os adolescentes se acostumaram a “virar as costas” para a opinião dos mais velhos e começaram a aderir a opinião do gueto em que se encontram inseridos como verdadeiras. No artigo “O imbecil juvenil”, o escritor Olavo de Carvalho pontua: “Eis a que se resume a famosa rebeldia do adolescente: amor ao mais forte que o despreza, desprezo pelo mais fraco que o ama”.
Os adolescentes são um “prato cheio” para políticos. Isso torna a democracia mais frágil, pois ela não parte de uma população que está apta a escolher os mais qualificados ao cargo e sim aqueles que fazem seus olhos brilhar com mais facilidade. A política se esquece do debate, dos projetos, das ideias e parte para os “gritos de guerra”, as respostas prontas e as revoluções sem causa.
O capítulo 02 será publicado no dia 03/08/2020. Não perca!
Por Francisco (Chicão).
Veja mais conteúdo do Holofote Digital, inscreva-se em nosso canal no YouTube e acesse nosso site e redes sociais:
YouTube do Holofote Digital: https://www.youtube.com/channel/UC4lC8npXPj6slsnNCiGS5gQ
Facebook do Holofote Digital: https://www.facebook.com/holofotedigitalhd/
Twitter do Holofote Digital: https://twitter.com/HolofoteD
Instagram do Holofote Digital: https://instagram.com/holofotedigital/
LEIA MAIS:
PROTEJA-SE DO VÍRUS FINANCEIRO
ENTENDA COMO CHEGAMOS A TANTOS CASOS DE COVID-19 EM BARRA DO GARÇAS
QUARTA TEMPORADA DE “LA CASA DE PAPEL” É ALUCINANTE
13 REASONS WHY CHEGA A ÚLTIMA TEMPORADA, COM FINAL DIGNO